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RITA É O MOMENTO

13 Mai

Um dos principais nomes da nova geração de modelos brasileiras leva o movimento body positive e a perspectiva da mulher negra a novos patamares

Tomado pela imprevisibilidade do futuro, 2020 significou, para muitos, a descoberta da capacidade (ou da necessidade) de reescrever planos. Para Rita Carreira, buscar novas rotas foi quase como encontrar um novo talento. Logo no começo da pandemia de coronavírus no Brasil, em março passado, a modelo passou a dedicar grande parte de seu tempo ao Coletivo de Pretas, fundado em 2019 em parceria com a irmã, Carol, que é diretora criativa. Juntas, elas idealizam e produzem os próprios editoriais em casa – a ideia é trazer as mulheres negras para o momento de criação da imagem de moda, e não só para a frente das câmeras. Com o distanciamento social, as produções se intensificaram. “Foi uma época em que as pessoas começaram a criar fotos em casa e a gente já tinha essa experiência, então começamos a produzir mais ainda”, conta Rita. Com as atenções mais voltadas para as redes sociais do que nunca, as fotos explodiram. “Foi a oportunidade de mostrar meu trabalho, ampliar minha voz e trazer à tona tudo aquilo que eu sempre preguei por intermédio de meu trabalho”. 

 Meses depois, ela começou a colher as sementes plantadas em 2020 e muitos anos antes: foi a primeira plus size a estampar a capa da Vogue Brasil, foi eleita a modelo do ano pelo Caderno Ela, do jornal O Globo, foi reconhecida pelo Instagram como uma das brasileiras que melhor representa o movimento body positive na rede social, e ainda um dos destaques da lista Under 30, da revista Forbes, que elege os brasileiros com menos de 30 anos que fazem a diferença em suas áreas.  

“Alguns anos atrás, uma mulher como eu jamais seria eleita ‘modelo do ano’. Quando estava começando, pensei em desistir porque não tinha ninguém parecido comigo, ninguém para quem eu pudesse olhar e me espelhar. Aí entendi que eu mesma poderia ser essa referência. Hoje, venho batendo na tecla de que quero desmistificar o que é ser modelo, porque quando as pessoas fecham os olhos e pensam em uma modelo bem-sucedida, quero que consigam imaginar alguém como eu, não somente uma mulher alta, com os cabelos compridos, loiros. Sempre quis ser uma referência para as pessoas. Agora mais ainda, para mudar esse imaginário”, define a paulistana de 27 anos.

NASCE UMA ESTRELA

A história clássica da jovem que é convidada para ser modelo por um olheiro enquanto passeia no shopping passa longe da trajetória de Rita. Desde que a profissão lhe despertou interesse pela primeira vez, aos 16, foram mais de oito anos até que ela assinasse contrato com a agência Ford Models, uma das maiores do país. “Digo que ser modelo caiu no meu colo. Fui acompanhar minha irmã quando ela estava fazendo produção de moda para um primeiro evento voltado ao mercado plus size.

A oportunidade surgiu e eu aproveitei, mas nunca foi algo que quis, até porque as pessoas nunca me enxergaram nem como uma criança nem como uma adolescente bonita”, ela relembra. Quando se entusiasmou com as possibilidades de seguir carreira na profissão, encontrou resistência na família. “As pessoas desacreditavam, diziam que a vontade logo ia passar.

Achavam que quem ia ser modelo era minha irmã, sendo que a comunicativa sempre fui eu”, diverte-se. 

Em vez de desistir, Rita transformou a falta de apoio em impulso para seguir adiante. “No começo, era muito difícil conseguir viver só da carreira de modelo. Eu precisava de um emprego fixo para pagar minhas contas, ir para os castings”. Na época, em 2014, a modelo trabalhava em uma loja de shopping e costumava falar para as colegas que seu sonho era estar na capa da Vogue e desfilar na São Paulo Fashion Week. A reação das amigas era uma só: rir.

“Lembro até hoje de um dia em que estava na porta da loja e outra vendedora falou: ‘Nossa, Rita, você sonha tanto que dá para ver os balõezinhos saindo da sua cabeça’. Eu sabia que aquilo não era o que queria para mim”.

O comentário coincidiu com a época em que Rita decidiu pedir demissão. Tomou coragem e comunicou sua chefe da época de que ela não aguentava mais, que era hora de ir atrás de seus sonhos. “Fui e nunca mais voltei. Foi a melhor decisão da minha vida. Não fiz planos, só precisei de coragem. A única coisa que fiz foi ligar para a minha mãe antes, porque precisava ajudar com as contas. Mas jurei que ia dar tudo certo”.

O misto de resiliência e capacidade de se reinventar foi essencial para que ela soubesse driblar os obstáculos da indústria – na época, ainda menos aberta a corpos e narrativas dissonantes dos padrões de beleza. “Olhando para trás, entendo que as questões de minha falta de trabalho estavam ligadas a uma indústria fechada, parte de uma sociedade racista. Ainda mais no segmento plus size, que já gera um preconceito por si só. Vi esse mercado [plus size] crescer desde o comecinho, vi a evolução e fiz parte dela”, conta. Quando a top participou de seu primeiro editorial em uma grande revista, em 2017, e logo em seguida fez sua estreia na SPFW, no desfile da Lab Fantasma, percebeu que sua vida estava prestes a mudar.

MAIS CURVAS, MAIS ATITUDE E MAIS ESPAÇO

Rita Carreira faz parte de uma nova geração de modelos que não tem medo de mostrar sua personalidade, suas convicções e sua vida além da passarela – abandonando o carão, a atitude blasé e o aspecto inatingível que era celebrado nas top models de algumas décadas atrás. É um movimento de transformação da moda, com representantes de destaque ao redor do mundo. Lá fora, modelos plus size como a holandesa Jill Kortleve e as norte-americanas Precious Lee e Paloma Elsesser fazem história em campanhas e desfiles de grandes grifes internacionais, ao mesmo tempo em que se posicionam sobre temas como pressão estética, gordofobia e o movimento body positive – tudo com muito carisma.

 Em um momento no qual as redes sociais são o principal cartão de visitas, faz sentido que autenticidade seja a moeda mais valiosa da vez. No Instagram, Rita conseguiu criar uma verdadeira comunidade com seus mais de 157 mil seguidores. “Como estou de um lado que luta pela quebra da opressão [contra as mulheres], quando passo por algum tipo de mudança em meu corpo, as pessoas ali não veem com um olhar de crítica. Elas querem saber, existe uma curiosidade, e quando começo a contar, rola uma identificação. Acho que é mais uma rede de apoio do que um lugar de julgamento”, explica.  

Para a modelo, a melhor parte da rede é poder estabelecer uma troca e dividir seus aprendizados com outras mulheres. “Lembro de um dia que me marcou muito, que foi quando postei uma foto de biquíni e uma menina me mandou mensagem dizendo que, graças àquela foto, ela conseguiu ir à praia”, relembra. “Ela nem colocou um biquíni, ela só foi à praia, depois de anos sem ir porque tinha engordado e não se sentia bem. Imagina, por causa da Internet, conseguir mover alguém a sair de casa. É muito louco ver que você pode fazer a diferença na vida de uma pessoa”. 

Quando passou pela transição capilar, no início do ano passado, Rita também recebeu várias mensagens de meninas que se sentiram inspiradas e decidiram começar o processo de volta aos seus cabelos naturais. “A transição foi uma das minhas maiores descobertas como mulher. Foi algo que precisei passar para me enxergar da maneira mais original possível e perder o medo de mudar”. Agora, com os fios platinados, ela quer explorar suas diferentes facetas.  

TRANSFORMAR A DOR

Mesmo com uma rede afetuosa on-line, a modelo também lida com questões comuns a pessoas que fazem uso intenso das mídias sociais: a ansiedade causada pela comparação com outros usuários e a preocupação com engajamento das suas postagens. “Mesmo tendo nosso trabalho e nossas coisas, às vezes a gente consome tanto a vida das pessoas, que acha que aquela precisa ser nossa vida também.

  Nesses momentos, é melhor sair um pouco para não interferir em quem a gente é”. Quando o Instagram é também uma importante ferramenta profissional, é preciso buscar o equilíbrio. “Já fico no celular o tempo todo por causa do trabalho, mas tenho tentado viver mais os momentos, deixá-lo um pouquinho de lado. Inclusive, desativei as notificações do Instagram para não ficar olhando o tempo todo”, conta. 

Foi por causa do Instagram, aliás, que Rita Carreira foi convidada para assumir o perfil na rede da revista Vogue Brasil em junho do ano passado. Na época, o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) tomava as ruas e as telas do mundo todo em manifestações contra o racismo sistêmico e a brutalidade policial. “Fiz a capa digital da revista, que foi fotografada pela minha irmã pelo celular – uma emoção gigante também. E aí veio o takeover para eu falar sobre conteúdos que ainda não apareciam muito por lá, como a gordofobia. Me senti com a chave da porta do palácio”, brinca. “Quero usar minha voz nesse movimento por uma moda mais plural não só por ser uma modelo fora do padrão, mas também por ser uma mulher negra vencendo todas essas barreiras. A gente sabe que tem um peso a mais”.

Enquanto levanta bandeiras, Rita também luta para não ser reduzida às causas que defende. “Quero que as pessoas me conheçam como uma modelo bem-sucedida sendo do jeito que sou. Acho que ainda estamos em um processo de educar as pessoas, mas espero que daqui a algum tempo não seja mais preciso justificar que eu sou plus size. Hoje, quando falo que sou modelo, a pessoa olha para o meu corpo e pensa que estou louca. Aí eu explico que sou plus size e ela entende, mas achando que faço qualquer coisa. Quando digo que estou na capa da revista, a pessoa muda o tratamento. Tenho muita vontade de ir para um reality show para que mais pessoas conheçam meu trabalho, e aí não vou precisar justificar quem sou. Iria para um reality com esse propósito e também para aproveitar a piscina, ia viver de biquíni justamente para falarem: ‘Ela é desse tamanho e fica de biquíni andando pela casa de um lado para o outro’. Nenhuma das mulheres que eram gordas ou menos magras ficavam de biquíni. Eu já ia entrar para mudar isso”, diz ela em tom bem-humorado, mas não menos sério.  

Movimentar estruturas e fazer diferente não são exatamente novidade para Rita Carreira. Mas foi só em 2020 que ela começou a se reconhecer como uma mulher potente. No processo, autoestima, confiança e autoconhecimento têm passado também pelas vulnerabilidades que a modelo agora aprendeu a não esconder. “Quando tinha uns 9, 10 anos, via muito a diferença de mim para as minhas amigas. Elas eram muito pequenas, magrinhas, brancas, com o cabelo liso. Sempre fui muito alta, com cabelo crespo. Não era gorda, mas já era maior do que elas. Lembro de vários episódios em que as mães das minhas amigas não colocavam a mão no meu cabelo, ou de quando uma das minhas amigas caía, e eu logo acolhia, pegava no colo, mas não sentia a mesma coisa delas comigo. Quando eu caía e me machucava, se fosse chorar, tanto elas quanto as mães falavam: ‘Olha o seu tamanho, você não tem que chorar’. Desde pequena, ouvi muito isso de engolir o choro. São traumas que a gente vai trabalhando, mas ainda tem. As pessoas relacionam muito o físico a você sentir dor ou não, como se a dor tivesse a ver com o tamanho”, recorda. 

"No fim do ano passado, passei por uma decepção em um relacionamento amoroso e abri isso para as pessoas no Instagram. Recebi várias mensagens de mulheres se identificando, falando que estavam se sentindo ainda mais próximas de mim. Mas também recebi muitas mensagens falando que eu tinha que ser forte. Falei: ‘Gente, já tive que ser forte a minha vida inteira. Hoje, não quero ser forte, quero chorar, quero sofrer’. Acho que a gente tem que se permitir ser frágil também. Como falo muito sobre autoestima, sobre resgatar mulheres, as pessoas ficam esperando sempre essa força. É como se eu estivesse sempre com essa armadura, nesse mood de supermulher. Posso ser uma supermulher e hoje estar num mood floral, estar leve. Quero mostrar essas facetas, mostrar que nós somos múltiplas”. 

PENSO, LOGO VISTO

A pluralidade dá o tom também do guarda-roupa da modelo, cada vez mais confiante para experimentar novos estilos e composições na hora de se vestir. Os obstáculos, porém, ainda são antigos: Rita sente falta de opções quando vai comprar roupas – assim como 63% dos consumidores, segundo pesquisa da Associação Brasil Plus Size (ABPS); 77% dos entrevistados acrescentam que as peças disponíveis nas lojas não vestem bem. Nos últimos três anos, o mercado plus size cresceu 21% no país, enquanto o setor de vestuário caiu 5%, de acordo com a Associação Brasileira de Vestuário (Abravest). Só em 2019, o nicho movimentou cerca de 7,3 bilhões de reais. O que os números comprovam é que há demanda e as pessoas querem poder escolher o que vestir – resta ver quando as marcas vão entender o recado.  

“A gente só tem que vestir o que tem, e não o que a gente quer. Existem várias mulheres gordas querendo se vestir bem, mas vejo muitas marcas com medo de ousar, de fazer um braço de fora, achando que a gente não vai querer. É como se a indústria quisesse escolher o que a gente tem que usar. Como mudar isso? Trazendo mulheres gordas para pensar para a gente, e não só um grupo de estilistas magros pensando para as mulheres gordas”, ela reflete. “Antes, buscava a representatividade na frente das câmeras, hoje quero ver atrás. Uma mulher negra decidindo coisas. É claro que a representatividade na frente da câmera é muito importante, porque vai impactar milhares de pessoas, mas a que está atrás também precisa ser cobrada”. Para Rita, todo o mercado muda quando a moda se posiciona. “No fim, as pessoas querem se identificar”.  


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